Foi um pastor luterano, um professor universitário com doutorado em teologia, um pioneiro do movimento ecumênico, um escritor prolífico, um poeta e uma figura central na luta contra o regime nazista. O foi publicado pela Igreja Evangélica Luterana na Itália. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nascido em Breslau (Alemanha) em 1906, com a irmã gêmea Sabine, Dietrich foi o sexto de !oito filhos de Karl e Paula Bonhoeffer. Seu pai era um importante professor de psiquiatria e neurologia; a mãe, uma das poucas mulheres formadas da sua geração.
Formando-se em teologia em Berlim, em 1927, Bonhoeffer iniciou a atividade de pastor em uma igreja alemã em Barcelona, em 1928. Em 1930, foi estudar em Nova York, no Union Theological Seminary. Em 1931, começou a lecionar na Faculdade de Teologia de Berlim e foi ordenado pastor.
Naquele período, ele começou a atividade no nascente movimento ecumênico, estabelecendo contatos internacionais que, depois, teriam grande importância para o seu empenho na resistência.
Em 1931, ele foi eleito secretário juvenil da União Mundial para a Colaboração entre as Igrejas e, em 1933, passou a fazer parte do Conselho Cristão Universal "Life and Work" (do qual nasceria, depois, o Conselho Ecumênico de Igrejas).
Com a ascensão de Hitler ao poder no fim de janeiro de 1933, a Igreja Evangélica Alemã, a qual Bonhoeffer pertencia, entrou em uma fase difícil e delicada. Muitos protestantes alemães acolheram favoravelmente o advento do nazismo. Em particular, o grupo dos chamados "cristãos-alemães" (Deutsche Christen) tornou-se porta-voz da ideologia nazista dentro da Igreja, chegando até a pedir a eliminação do Antigo Testamento da Bíblia.
No verão de 1933, aqueles que, inspirando-se nas leis arianas do Estado, propuseram um "parágrafo ariano" para a Igreja, segundo o qual era impedido que os "não arianos" se tô sem ministros de culto ou professores de religião. A disputa que se seguiu daí provocou uma profunda divisão dentro da Igreja: a ideia da "missão para os judeus" era muito difundida, mas agora os cristãos-alemães defendiam que os judeus fossem uma raça separada que não podia se tornar "ariana" nem mesmo mediante o batismo, negando assim a validade do Evangelho.
Bonhoeffer se opôs firmemente ao parágrafo ariano, afirmando que a sua ratificação submeteria os ensinamentos cristãos à ideologia política: se aos "não arianos" fosse impedido o acesso ao ministério, então os pastores teriam que renunciar em sinal de solidariedade, também sob o custo de fundar uma nova Igreja, livre da influência do regime.
No artigo de abril de 1933 intitulado "A Igreja diante do problema dos judeus", Bonhoeffer foi o primeiro a abordar o tema da relação entre a Igreja e a ditadura nazista, defendendo fortemente que a Igreja tinha o dever de se opor à injustiça política.
Em setembro de 1933, quando o parágrafo ariano foi aprovado pelo Sínodo nacional da Igreja Evangélica, Bonhoeffer se comprometeu
a informar e sensibilizar o movimento ecumênico internacional sobre a gravidade da questão. Ele também recusou um posto de pastor em Berlim, por solidariedade com aqueles que eram excluídos do ministério por razões raciais, e decidiu se mudar para uma congregação de língua alemã, em Londres.
Em maio de 1934, nasceu a chamada Igreja Confessante por obra de uma minoria interna da Igreja Evangélica Alemã, que adotou a Declaração de Barmen em oposição ao nazismo. Em abril de 1935, Bonhoeffer voltou para a Alemanha para dirigir, antes em Zingst e depois em Finkenwalde, um seminário clandestino para a formação dos pastores da Igreja Confessante, que estava sofrendo pressões crescentes por parte da Gestapo, que culminaram em agosto de 1937, no decreto de Himmler que declarava ilegal a atividade de formação de candidatos a pastores para a Igreja Confessante.
Em setembro, o seminário de Finkenwalde foi fechado pela Gestapo. Nos dois anos seguintes, Bonhoeffer continuou a atividade de professor na clandestinidade; em janeiro de 1938, a Gestapo o baniu de Berlim e, em setembro de 1940, proibiu-o de falar em público.
Em 1939, Bonhoeffer se aproximou de um grupo de resistência e conspiração contra Hitler, constituído entre outros pelo advogado Hans von Dohnanyi (seu cunhado), pelo almirante Wilhelm Canaris e pelo general Hans Oster. O teólogo constituiu um elo fundamental entre o movimento ecumênico internacional e a conspiração alemã contra o nazismo.
A sua atividade para ajudar um grupo de judeus a fugir da Alemanha levou à sua prisão em abril de 1943. Durante os dois anos de prisão que precederam a sua morte, nas cartas ao amigo Eberhard Bethge, Bonhoeffer explorou o significado da fé cristã em um "mundo que se tornou adulto", perguntando-se: "Quem é Cristo para nós hoje?".
O cristianismo muitas vezes fugiu do mundo, tentando encontrar um último refúgio para Deus em um canto "religioso", a salvo da ciência e do pensamento crítico. Mas Bonhoeffer afirmou que é justamente a humanidade na sua força e maturidade que Deus exige e transforma em Jesus Cristo, "a pessoa pelos outros".
Depois de uma tentativa fracassada de atentado contra Hitler no dia 20 de julho de 1944, Bonhoeffer foi transferido para a prisão de Berlim, depois para o campo de concentração de Buchenwald e, por fim, para o de Flossenbürg, onde foi enforcado junto com outros conspiradores.
Durante a sua vida, Bonhoeffer publicou, em 1930, Sanctorum communio; em 1931, Ato e ser, em 1937, Discipulado; em 1938, A vida comum. As cartas e as anotações escritas durante sua prisão e enviadas ao amigo Eberhard Bethge foram publicados por ele postumamente em 1951, junto com as cartas para os pais e para algumas poesias, sob o título de Resistência e submissão.
Apareceram postumamente as obras que, segundo o autor, deviam constituir a sua maior contribuição: Ética (1949); Tentação (1953); 0 mundo maior de idade (1955-1966) (NEV, 13 14/2005).
Bonhoeffer e suas obras
Já se passaram 66 anos desde que o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer foi executado no campo de concentração de Flossenbürg, condenado à força em um processo sumário, poucas semanas antes da sua libertação.
A execução ocorreu poucos dias antes do fim da guerra e daquele regime que ele contribuirá a combater, porque, como escreve o amigo Bethge na notícia sobre os "Últimos dias de Bonhoeffer", ele pertencia ao grupo daqueles "que absolutamente não deveriam sobreviver".
Porém, o nome de Bonhoeffer sobreviveu. E ainda tem muito a testemunhar no novo milênio, não menos do que no século XX.
Dietrich Bonhoeffer nasceu em 1906 em Breslau (Breslávia), filho de Karl Bonhoeffer, professor de psiquiatria e neurologia na Universidade de Berlim, e Paula von Hase, descendente da nobreza prussiana. Sexto de oito filhos e gêmeo de Sabine, ele respirou desde a primeira infância uma atmosfera de grande abertura e laicidade.
A sua escolha de fazer os estudos em teologia, com uma particular atenção à dimensão pastoral, certamente não foi obstaculizada, mas foi bastante singular para os seus familiares.
Depois de concluir o doutorado com apenas 21 anos de idade e de obter a habilitação para o ensino universitário aos 24, iniciou-se uma carreira universitária segura e promissora. Em 1933, porém, Adolf Hitler tornou-se chanceler, e o jovem teólogo deixou a cátedra universitária para não ter que colaborar com o novo governo, que perseguia explicitamente uma política militarista e antissemita.
As origens da Igreja Confessante
Bonhoeffer exigiu com força uma ruptura com aquela ala da Igreja luterana propensa a um compromisso com a ideologia nazista. Em particular, nos primeiros meses de 1933, estava em discussão a introdução de um “parágrafo ariano”, ou seja, de uma cláusula que excluía do ministério todos aqueles que tinham origens judaicas. Bonhoeffer denunciou a natureza herética dessa proposta e queria um posicionamento mais decidido por parte do establishment eclesial e teológico, mas isso não ocorre, e no dia 23 de julho de 1933 os Deutsche Christen (os “cristãos alemães”), defensores do nacional-socialismo, levaram a melhor. Bonhoeffer deixou a Alemanha e assumiu a direção de uma paróquia da comunidade alemã em Londres.
Essa retirada temporária, no entanto, não foi total: Bonhoeffer continuou muito ativo no movimento ecumênico, no qual levou em frente a batalha pela condenação tanto daquela que ele definia como “heresia” nacional-socialista dentro da Igreja Protestante alemã, quanto dos ventos de guerra que estavam se levantando na Europa.
Em 1934, nasceu a Igreja Confessante alemã, em oposição à Igreja do regime, e Bonhoeffer foi chamado para dirigir o Predigtseminar de Finkenwalde, perto de Stettin, ou seja, o seminário que devia formar os pastores da Igreja Confessante.
A experiência de Finkenwalde, que apresenta uma inovadora caracterização comunitária, está na base de duas obras fundamentais de Bonhoeffer: “Discipulado” (Ed. Sinodal), e “Vida em comunhão” (Ed. Sinodal), impressas respectivamente em 1937 e 1939. São obras dirigidas a um público intraeclesial, como era absolutamente intraeclesial a resistência de Bonhoeffer ao nacional-socialismo até 1937, quando o Predigtseminar de Finkenwalde foi fechado pela polícia.
Depois, as coisas mudaram. Ainda em 1934, em uma carta ao amigo pastor Erwin Sutz, Bonhoeffer escreveu: “... embora eu colabore com todas as forças da oposição, está claríssimo para mim, no entanto, que esta oposição é apenas um estágio de passagem transitório para uma oposição totalmente diferente” (Scritti, p. 387). Ele não estava errado.
Uma vez que o seminário da Igreja Confessante foi fechado, Bonhoeffer tentou continuar a formação dos jovens pastores por meio dos vicariatos coletivos, ou seja, encontros recorrentes realizadas em paróquias amigas da Igreja Confessante. A experiência não funcionou. Em janeiro de 1938, a polícia interveio para dissolver o encontro dos treinadores, e Bonhoeffer foi proibido de ficar em Berlim.
Reduzido ao silêncio e à inação, o teólogo cultivou a ideia de se mudar para os Estados Unidos, onde uma cátedra em Nova York estava pronta para ele. Ele foi para lá em junho de 1939, pouco antes do início da guerra, mas depois recusou. E voltou para a Alemanha.
“Não terei nenhum direito de participar da reconstrução da vida cristã depois da guerra na Alemanha se eu não compartilhar as provações deste tempo com o meu povo”, escreveu ele em uma carta ao teólogo Reinhold Niebuhr.
Compartilhar as provações do seu povo significava, para ele, participar da resistência ao nacional-socialismo. Quase toda a sua família estava envolvida na conspiração do almirante Canaris, e Bonhoeffer aceitou colaborar para derrubar o regime nazista, que, enquanto isso, começou as deportações em massa para os campos de extermínio e fez eclodir a Segunda Guerra Mundial.
Oficialmente, Bonhoeffer continuou membro da Igreja Confessante, mas, ao mesmo tempo, secretamente se alistou no serviço secreto do Abwehr (o exército alemão), verdadeiro covil dos resistentes. A sua tarefa era a de levar informações aos países inimigos sobre o desenvolvimento de uma resistência interna, utilizando os seus conhecimentos ecumênicos.
Entre 1940 e 1943, Dietrich Bonhoeffer viajou muito: Noruega, Suíça, Roma, Veneza... e residiu temporariamente no mosteiro beneditino de Ettal, na Baviera, onde trabalhou em uma obra que ele sabia que não poderia publicar naquele momento: a “Ética” (Ed. Sinodal), uma obra que ficou incompleta, que colocava a questão do bem no coração da história ou, melhor, de quem age na história e não se recusa a fazer as contas com ela.
Na base dessas páginas, publicadas pela primeira vez pelo amigo Bethge em 1949, está a pergunta que um prisioneiro italiano fez ao teólogo alemão na prisão de Tegel: por que um cristão deveria participar da resistência contra Hitler? Tal escolha não envolve um irremediável “sujar-se as mãos”? Essa é a questão de fundo da reflexão bonhoefferiana na “Ética”.
A resposta icástica de Bonhoeffer ficaria famosa: “Quando um louco joga o seu carro sobre a calçada, eu não posso, como pastor, contentar-me em enterrar os mortos. Se eu me encontrar naquele lugar, devo pular e agarrar o motorista ao volante”.
Em outras palavras: não posso, como cristão, eximir-me do fato de assumir a responsabilidade de realmente combater o mal do mundo, não posso adiar a ação na história à intervenção de um deus ex machina, não posso ficar indiferente diante do grito de quem é pisoteado.
Com efeito, Bonhoeffer assumiu a responsabilidade pela ação e a sustentou até o fim: ele foi preso em abril de 1943 e, na prisão, conseguiu resistir aos interrogatórios e não revelar as tramas da conspiração contra Hitler, da qual tinha conhecimento e que levaria, no dia 20 de julho de 1944, ao atentado de Stauffenberg em Rastenburg. O fracasso do atentado marcaria a derrota dos conspiradores e o fim de Bonhoeffer.
Transferido para a prisão da Gestapo de Prinz-Albrecht-Strasse em outubro de 1944 e para o campo de concentração de Buchenwald em 7 de fevereiro de 1945, ele foi executado no dia 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg.)
Testemunho de resistência
As cartas e os escritos compostos durante o cárcere em Tegel seriam publicados postumamente pelo amigo Bethge com o título “Resistência e submissão” (Ed. Sinodal).
Recordar a vida e a obra, as escolhas e o pensamento de Bonhoeffer, hoje, no meio de uma pandemia que parece se colocar quase como um divisor de águas entre duas épocas, não pode e não deve ser um exercício puramente celebrativo. O testemunho do pastor e teólogo alemão faz parte daquela memória da Igreja e da civilização, cristã e humana, que temos o dever de recolher, conservar e transmitir na fluida era pós-moderna.
Deixar esta história de testemunho cair no esquecimento ou reduzi-la a um ícone sem implicações reais significaria nos tornar todos mais vazios e desenraizados, como escreve o Papa Francisco na Fratelli tutti a propósito do “fim da consciência histórica” (n. 13).
É claro que ler Bonhoeffer em 2021 não é o mesmo que lê-lo nos anos 1960 ou 1970, nem nos anos 1980 ou 1990. Operando uma simplificação notável, talvez se possa dizer que, nos anos 1960 e 1970, o nome de Bonhoeffer esteve associado à chamada “teologia da morte de Deus” ou teologia da secularização, com a atenção voltada sobretudo à ideia do “cristianismo não religioso”.
Nos anos 1980 e 1990, redescobriu-se a dimensão profundamente cristológica da reflexão bonhoefferiana, cujo desenvolvimento é revisto na sua profunda unitariedade como teologia da encarnação e da cruz, aberta à questão da relação com o outro e da implicação responsável na história.
Descentramento
E hoje? Quais são hoje as palavras deste fascinante testemunho que mais nos interpelam? Longe de querer dar uma resposta exaustiva, gostaria de propor três palavras que eu considero iluminadoras.
Descentramento, acima de tudo. Na época da busca pela identidade, quando o mantra mais difundido é “realizar-se”, quando o imperativo categórico parece ter se tornado “aproveite todas as possibilidades que a vida oferece para desenvolver todas as suas potencialidades”, Bonhoeffer, com as suas escolhas e os seus escritos, propõe o exemplo de uma vida despedaçada, cortada, que permaneceu “em potência”, tanto na esfera pessoal dos afetos, porque Bonhoeffer jamais conseguiria levar a cumprimento o casamento com a noiva Maria von Wedemeyer, tanto na esfera profissional, porque o teólogo não poderia elaborar completamente as intuições dos últimos anos e colher os seus frutos.
Bonhoeffer propõe uma vida que permaneceu como fragmento, na qual o ponto focal não está na própria identidade, mas, precisamente, no descentramento, não naquilo que realizou para si, mas naquilo que deixou, não naquilo que alcançou, mas naquilo do qual se desligou (a carreira universitária, a segurança econômica e social, a família e o amor, a liberdade, a vida…) não por uma vontade dolorista, mas apenas para ser fiel ao seguimento de Cristo.
Na carta da prisão de 21 de julho de 1944, um dia após o atentado fracassado contra Hitler, quando o fim que o esperava já se perfilava claramente, ele escreveu assim ao amigo Bethge: “Quando renunciamos completamente a fazer algo de nós mesmos – um santo , um pecador arrependido ou um homem da Igreja (uma assim chamada figura sacerdotal), um justo ou um injusto, um doente ou um sadio – (...) então jogamo-nos completamente nos braços de Deus, então não levamos mais a sério os próprios sofrimentos, mas os sofrimentos de Deus no mundo, então vigiamos com Cristo no Getsêmani, e, creio eu, esta é a fé, está a metanoia/μετάνοια, e assim nos tornamos homens, nos tornamos cristãos”.
Tornamo-nos plenamente homens e mulheres quando renunciamos a fazer algo de nós, quando aceitamos abandonar o modelo de sucesso que a sociedade mais ou menos nos impõe, quando não olhamos para as próprias dores e para os próprios sofrimentos, mas conseguimos afastar o olhar de nós mesmos para orientá-lo ao mundo, para a dor dos outros; e nos tornamos cristãos quando, dessa dor, reconhecem-se os sofrimentos de Deus no mundo (Mt 25,31-46). A realização da própria vida se dá no êxodo de si mesmo. Este é o ensinamento de Bonhoeffer.
Coragem
A segunda palavra, depois, é: coragem. Trata-se de uma palavra que está sofrendo uma grande crise nos últimos anos: estamos na era dos seguros (seguro de vida, seguro do carro, patrimonial, seguro-saúde...), seguros mais ou menos obrigatórios, que tem como finalidade afastar cada vez mais a linha do perigo, até quase apagá-la. E, junto com o perigo, também se apaga a coragem.
No início do terceiro milênio, a coragem parece uma virtude fora de moda: não se pede aos jovens a coragem de enfrentar a vida, mas sim as competências adequadas para se defenderem dos desafios do mundo. A educação e a escola visam, em primeiro lugar, a “armar” as crianças e os adolescentes para uma batalha em que as variáveis devem ser o máximo possível controláveis.
Na realidade, como escreve o psicanalista argentino Miguel Benasayag, em “Funzionare o esistere?” [Funcionar ou existir?], “em cada constelação da existência, se não houver um mínimo de coragem, afunda-se no nada”. Não é possível eliminar o medo do escuro simplesmente acendendo a luz. Chega um momento em que a escuridão deve ser enfrentada, simplesmente, com coragem e sem garantias. Sem coragem, não se pode assumir responsabilidades e, portanto, não é possível se tornar homens e mulheres adultos, maduros, capazes de estar de pé, apesar e junto com todas as próprias fragilidades.
O que acontece hoje, ao se substituir de modo tácito e generalizo a coragem pela busca de garantias em todos os campos, tem no fundo alguma correspondência com aquilo que Bonhoeffer observava na Alemanha do seu tempo, quando a obediência à autoridade substituíra a coragem da liberdade de ação.
A falta de coragem, hoje como naquela época, é condição para a adequação das pessoas ao sistema, um sistema ideológico no caso de Bonhoeffer; consumista no nosso caso. Onde falta a coragem, de fato, falta a possibilidade da liberdade, a menos que se entenda a liberdade como uma mera possibilidade formal de escolhas, e não como escolha concreta, destinada sempre a fazer as contas com os limites da realidade.
Sem a coragem, os limites da realidade não são enfrentados, e, se os limites não são enfrentados, a realidade também não é enfrentada.
Olhar a partir de baixo
A terceira palavra que Bonhoeffer nos entrega e que nos interpela particularmente é “o olhar a partir de baixo”. Em um texto redigido pouco antes da sua prisão, o teólogo resistente escreveu: “Continua sendo uma experiência de valor excepcional o fato de ter aprendido, enfim, a olhar para os grandes eventos da história universal a partir de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados , dos impotentes, dos oprimidos e dos ridicularizados, em uma palavra, dos sofredores”.
Também neste caso, a assunção da perspectiva de baixo não ocorre com base em uma humilhação voluntarista, mas, em vez disso, é fruto dos eventos, consequência da assunção de responsabilidade na história. Isso levou Bonhoeffer e os seus companheiros conspiradores, crentes e não crentes, a mudarem a sua posição de prestígio e poder social e, enfim, se encontrarem entre os perdedores, entre os últimos.
Hoje, em uma sociedade que se divide entre vencedores e perdedores, colocando estes últimos certamente entre os descartes inúteis, as palavras de Bonhoeffer adquirem uma força inédita.
O "ser-aquém" do cristianismo. Carta de Dietrich Bonhoeffer para Eberhard Bethge
O teu Dietrich
Campo de concentração de Mössenburg (Foto: Wikimedia Commons)
A resistência Teológica de Bonhoeffer e Barth
KRÖTKE, Wolf. Karl Barth and Dietrich Bonhoeffer.
Theologians for a Post-Christian World.
Baker Academic, 272 páginas
Wolf Krötke, um leitor próximo de ambos os teólogos, é capaz de aprimorar os brilhantes pontos essenciais da obra deles e de levar o leitor a reexaminar seus próprios pensamentos sobre a relação entre nós e Deus à luz das afirmações deles - a ponto de perguntar sempre de novo: é nisso que eu acredito?
Krötke, pastor da Alemanha Oriental comunista, compartilha uma intenção fundamental com seus interlocutores, que também eram pastores: falar com inteligência e honestidade sobre o modo como estudiosos e não estudiosos pensam sobre Deus.
A descrição de Krötke da sua própria confiança em Barth e Bonhoeffer para construir uma "resistência teológica" quando a resistência política era amplamente fútil ecoa elegantemente as suas investigações sobre os problemáticos esforços deles para fazerem o mesmo durante a ascensão do fascismo.
A partir de 1934, com o argumento teológico da Declaração de Barmen contra o Estado totalizante, Barth, assim como Bonhoeffer, chegou à conclusão de que às vezes era necessária uma resistência política violenta.
De sua parte, Krötke não tem certeza sobre a "apropriação pela Igreja dos instrumentos violentos da nossa era pecaminosa. A guerra, mesmo uma guerra chamada de justa (...), não oferece nenhum paradigma geral para a resistência cristã à desumanidade, ao racismo e ao genocídio".
Krötke expõe a grande estrutura do pensamento de Barth, desde seus primeiros trabalhos sobre Paulo na Epístola aos Romanos (1919) até os 13 volumes de "Dogmática eclesiástica" (1932-1967).
"Barth gostava de dizer", observa Krötke, “que a Igreja e a teologia têm a tarefa de 'começar do zero a cada hora'." Isso certamente é verdade na obra de Barth: você não consegue captar ponto algum sem "começar de novo", remontando-o às suas premissas.
No relato de Krötke, os principais pilares do pensamento de Barth são estes: Deus é, desde o princípio, antes mesmo da criação, "o Deus que nos encontra em Jesus Cristo e é entendido em termos da história da graça de Deus com a humanidade"
Esse encontro e as suas manifestações entre nós são a "história de uma parceria em que o Deus, que é amigo dos seres humanos, vem ao nosso meio e nos torna capazes de ser seus parceiros livres e de levar vidas que merecem ser chamadas verdadeiramente de humanas".
Finalmente, "como a nossa orientação fundamental é a relação com Deus, realizamos nossa liberdade mais plenamente correspondendo ao chamado de Deus".
Amizade divina
Krötke cita críticos que acham que a visão de Barth oferece muito pouco espaço e agência para a humanidade. No entanto, o encontro com um Deus que optou por nos agraciar com uma amizade continua sendo o ponto de partida de Barth. Todos os caminhos partem daí.
Os leitores devem decidir por si mesmos se isso coloca Deus no centro da vida humana, como Barth acreditava, ou se, como dizem seus críticos, o relato de Barth sobre o nosso encontro com Deus é uniforme demais - muito dependente das noções idealistas alemãs sobre a obra do Espírito através da história e surdo para os detalhes da relação de qualquer pessoa real com Deus.
É uma doutrina do tipo "pegar ou largar", como Bonhoeffer descreveu? Ou ela permite que a pessoa se sinta abraçada em sua parceria com Deus?
Tendo estabelecido a perspectiva teológica fundamental de Barth, Krötke passa a explicar as ideias de Barth sobre a natureza do pecado, a relação entre o cristianismo e
outras fés (incluindo o ateísmo e a aliança com Israel), a importância dos nossos esforços falhos de reconciliação (com Deus e com as outras pessoas), o papel da pastoral em possibilitar o encontro com Deus (e o papel da exegese em compreendê-lo) e, mais importante, a natureza da "parceria" divino-humana concedida pela graça aquilo que Barth chamou de "a soma do Evangelho".
Krötke inicia a sua seção sobre Bonhoeffer observando que ele também ancorou seu trabalho no encontro entre a pessoa e Deus. "A fé é um dom de Deus", explica Krötke, "enquanto a religião é sempre uma relação com Deus moldada pelos humanos." O realismo de Bonhoeffer pode nos ajudar a ver as múltiplas relações entre as pessoas, Deus, a fé e as instituições religiosas.
Nisso, ele difere de Barth, que afirmava que todas as pessoas estão "fadadas" a ter uma religião. Essa ideia de "destino", acreditava Bonhoeffer, nega a liberdade por meio da qual as pessoas vão ao encontro de Deus.
No belo resumo de Krötke, "os seres humanos, distintos da sua religião, são criaturas amadas por Deus, cuja liberdade para encontrar Deus contém muito mais possibilidades do que qualquer forma particular de comportamento religioso".
Bonhoeffer defendia a ideia agostiniana de que, no encontro com Deus, descobrimos novas possibilidades de experiência que, de outra forma, não poderíamos sequer imaginar. E quem é esse Deus? Não é um deus ex machina que nos salva no momento da necessidade, e não apenas o Jesus fraco e crucificado, mas sim o Deus descartado da vida moderna: "Deus é para o mundo apenas ao se afastar dele e, assim, ao lhe dar tempo e oportunidade de ser ele mesmo".
Bonhoeffer escreveu sobre a "loucura" do Deus invisível, embora "o mistério de Deus liberte os seres humanos para permitir que Deus vá até eles". Deus é encontrado na oração e na meditação sobre as Escrituras, e Krötke oferece uma análise eloquente do "Livro de orações da Bíblia: introdução aos Salmos", de Bonhoeffer.
A potência desse Deus, que está perto quando não podemos fazer nada, tornou-se mais importante à medida que os esforços para deter Hitler fracassaram, e Bonhoeffer, condenado à prisão, nada mais pôde fazer. "Compartilhar" o sofrimento desse Deus em um mundo sem Deus é uma fonte de orientação e consolo.
É como nos identificamos "generosa e abnegadamente com toda a comunidade e com o sofrimento dos nossos irmãos humanos".
A discussão de Krötke sobre essas ideias estimula o leitor a um diálogo com Bonhoeffer sobre o papel do sofrimento divino e humano, o mistério e a invisibilidade de Deus, e a visibilidade de Jesus ("O Deus de Bonhoeffer é o Deus que se torna nada mais do que humano").
Embora os cristãos alemães que seguiram Hitler acreditassem que Deus se manifestava na história alemã, Bonhoeffer sustentava que Deus se manifesta apenas em e por meio de Jesus Cristo. Mesmo assim, Krötke também comenta sobre a "abertura de Bonhoeffer a outras religiões", que, “assim como a sua compreensão da falta de religiosidade, surge da sua fé em Deus em Cristo".
Nossas muitas religiões e variedades de fé fazem parte da vida humana, onde Deus nos encontra. O penúltimo capítulo de Krötke sobre Bonhoeffer explora sua obra política, o "primeiro esforço concentrado no mundo teológico alemão (...) para enquadrar a questão da ordem do Estado em termos de cristologia".
Bonhoeffer afirmava que a Encarnação e a Ressurreição não destroem o mundo, mas sim o afirmam. Assim, o Reino de Cristo "é o fundamento do Estado [mundano] também,
que afasta o poder da morte, preserva a ordem da comunidade, do matrimônio, da família e da nação [Volk]' contra o indivíduo isolado e restringe a sede de egoísmo".
Igreja e Estado
Na visão de Bonhoeffer, assim como na de Lutero, não há direito à revolução.
Mas isso não significa que o Estado tenha carta branca; pelo contrário, o Estado é obrigado a promover as outras ordens da sociedade - Igreja, família, esfera econômica, "cultura, educação e arte". E a Igreja deve procurar limitar o poder do Estado, que, em seu uso das sanções e da força, se distingue do reino de amor de Cristo.
Enquanto o Terceiro Reich mantinha um mínimo de ordem social, Bonhoeffer hesitava em exigir que a Igreja o identificasse como uma aberração que "surge como 'a besta do abismo"" na negação de Cristo. Mas Bonhoeffer acreditava que os cristãos individuais podiam descobrir que o nazismo havia abandonado a obrigação de trabalhar com - e de ser limitado por - outras ordens da sociedade, colocando-se acima delas como uma espécie de ídolo. Em seu ensaio de 1933 "A Igreja e a questão judaica", Bonhoeffer escreveu que "o Estado deve criar 'lei e ordem' para todos os seus 'sujeitos'. O Estado, portanto, restringe ilegitimamente seu ofício quando recusa a ordem e a justiça a um determinado grupo de pessoas - em outras palavras, os judeus (...) A Igreja deve se levantar, sem exceção, por todas as 'vítimas de qualquer ordem social' e, em primeiro lugar, pelos judeus".
Por causa da recusa de justiça por parte do Estado alemão aos judeus, Bonhoeffer se encontrou em "uma situação extraordinária" na qual, como Krötke escreve, alguém poderia se afastar "do normal e regular' e decidir por uma ação além de qualquer possível regulação pela lei".
Enquanto Hitler tornava a ilegalidade um novo modo de governo, Bonhoeffer via sua própria decisão de sair da lei apenas como uma exceção tornada necessária por circunstâncias excepcionais - e foi, notavelmente, uma decisão pela qual ele estava disposto a aceitar punição. Na opinião de Krötke, foi esse pensamento que impulsionou Bonhoeffer a voltar dos Estados Unidos para a Alemanha em 1939. Krötke acha que a posição teológica de Bonhoeffer sobre o Estado nazista foi finalmente muito mais radical do que a Declaração de Barmen de 1934, escrita em grande parte por Barth.
No entanto, Krötke também nos deixa com mais uma ironia: a teologia que Bonhoeffer desenvolveu para lutar contra o Estado fascista logo seria apropriada pelas autoridades da Alemanha Oriental em apoio ao Estado comunista.
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