A Criação dos Céus e da Terra

A criação dos céus e da terra

Antes de examinar o conteúdo bíblico-teológico dos dois relatos da criação (Gênesis 1-2), é importante considerar as cosmogonias provenientes do contexto histórico em que foi formado o texto de Gênesis.

Cada civilização antiga produziu seu próprio conjunto de literatura mitológica, em que os assuntos mais correntes eram as origens e o comportamento dos deuses (denominados mitos) ou as façanhas dos heróis da antiguidade (denominadas lendas). Nos mitos, os personagens são sempre deuses. Nas lendas, são principalmente pessoas, mas os deuses também possuem papéis de destaque. Sendo assim, as narrativas do Antigo Oriente Próximo seguem uma descrição mitológica em que a formação do universo é apresentada como resultado de uma luta entre deuses. A criação do ser humano é, portanto, uma maneira de resolver a situação de desconforto que existia no mundo divino.


Outros Relatos da Criação

Épico Enuma Elish

Épico de enuma elish

O poema mesopotâmico Enuma Elish, por exemplo, apresenta os deuses, entre os quais Marduk. Tais deuses surgem de um caos primordial, baseado em dois elementos primários: Apsu, que representa a água doce, a água da terra; e Tiamat, um símbolo da água salgada, da água do mar. Apsu, desejando tranquilidade, decide se livrar dos deuses mais jovens, culpados da falta de paz. Por causa disso, Apsu foi imerso em um sono profundo e morto pelo deus Ea. Tiamat tenta vingar essa morte. Na luta entre Marduk e Tiamat, a deusa, derrota- da, é aberta em duas partes como uma ostra. O céu é formado com uma parte e a terra com a outra. Em seguida, Marduk, a pedido dos deuses, decide criar o homem para se dedicar ao trabalho, para que as divindades pudessem descansar. O homem foi, então, criado a partir do sangue de um deus sacrificado, Kingu, condenado à morte por ter instigado a luta de Tiamat contra Marduk. O homem terá em suas veias, portanto, o sangue de um deus caído.


Épico de Atrahasis

Épico de atrahasis

O segundo relato a ser considerado é o Épico de Atrahasis, escrito, no máximo, em 1700 a.C., de quando nos chegam as cópias mais antigas. Embora o enfoque do relato seja mais exatamente o Dilúvio, vou me limitar às partes que tratam da criação. O épico começa com uma descrição do mundo anteriormente à criação da humanidade. Três deuses maiores haviam repartido o universo entre si: Anu governava os céus, Enlil governava a terra e Enki governava as águas. O épico concentra-se na terra, cuja supervisão é um misto de bênção e fardo, mais suportada que apreciada. Enlil é encarregado, mais especificamente, dos deuses cujo principal trabalho é escavar o leito dos rios Tigre e Eufrates. Assim como nos modernos litígios trabalhistas, os empregados recusam- se a trabalhar e rebelam-se contra Enlil. Embora sejam seus filhos, ele chega a ficar assustado com a violência dos amotinados. Ao presenciar a intransigência dos filhos, Enlil, começando a chorar, ameaça renunciar e partir para viver no céu com Anu.

Enki, ao assumir o papel de árbitro da situação, solidariza-se com os deuses pressionados com o excesso de trabalho. Ele sugere a criação da humanidade, a fim de liberá-los de sua labuta. Seguindo a sugestão de Enki, os deuses matam um dos seus, Wei-la (talvez o líder da rebelião). Utilizando a carne e o sangue do deus morto, juntamente com barro, a humanidade é criada com o auxílio de Nintu(r)/Mami, deusa da procriação. Em agradecimento, os deuses lhe conferem o título de "senhora de todos os deuses". Ao todo, são criados sete homens e sete mulheres.


O Relato Bíblico

A narrativa da criação de Gênesis 1.1-2.4a é um relato Sacerdotal que rivaliza com as cosmogonias do Antigo Oriente Próximo. Nele, narra-se a atividade criadora de Deus, chamado no texto de Elohim. Tal atividade acontece no marco simbólico de uma semana: são sete dias, divididos em dois momentos: um momento de distinção da luz das trevas, das águas inferiores das superiores por meio do céu, do mar e das terras secas, que compreende os três primeiros dias. No terceiro dia, as plantas também foram criadas, uma ação de orna- mentação complementada com a criação do sol, da lua e das estrelas.

Elohim garante a superação do caos primordial ao "dizer" [em hebraico, dābār] (e não lutar, como nas cosmogonias mesopotâmicas). A fala divina é Palavra-Acontecimento: Yahweh diz e tudo o que ele evoca pela sua voz acontece. A fala divina faz surgir primeiro a luz, aquilo que permite ver a bondade inerente à criação (Gênesis 1.4,10,12,18,21,25). A luz e as trevas ainda contêm o caos, mas permite vê-lo, percebê-lo e transformá-lo. Mais ainda: a luz dá início aos dias, cujos ciclos são contados da noite para o dia, das trevas para a luz. Logo, o surgimento da luz a cada dia faz com que se permita ver a criação como ato contínuo, uma vez que, como no primeiro dia da história, nas trevas surgiu a luz pela Palavra de Deus: yəhî 'ör wa, yəhî-ör [haja luz, e houve luz] (Gênesis 1.3).

A escuridão (noite) e a luz que a segue (dia) serão a ocasião, nos cinco dias seguintes, da transformação que Elohim faz; Ou seja, Ele transforma o caos, e ao fim de sete dias descansa. Esse fazer [āśā] é o efeito do falar divino (e não das lutas entre as divindades, como geralmente ocorre nas cosmogonias). O resultado da ação de Elohim é narrada em tríades:


Segundo dia (Gênesis 1.7):

1. Firmamento;

2. Águas sobre o firmamento;

3. águas sob o firmamento.


Terceiro dia (Gênesis 1.11):

1. Relva;

2. Ervas que dão semente;

3. Árvores que dão fruto.


Quarto dia (Gênesis 1.16):

1. Luzeiro para governar o dia;

2. Luzeiro para governar a noite;

3. Estrelas.


Quinto dia (Gênesis 1.21):

1. Grandes animais marinhos;

2. Seres viventes que rastejam;

3. Aves.


Sexto dia (Gênesis 1.24):

1. Animais domésticos

2. Répteis;

3. Animais selváticos.

Cada tríade mostra que Elohim está vencendo as forças dúplices do caos. O ser humano [ādām], criado no sexto dia, é macho e fêmea [zākār ünəqēbā ] - dúplice, como o caos. O que livra o ser humano do caos é a imagem de Elohim [sélem 'ělōhim], que o faz superar o caos. Assim, a narrativa da criação convida os seus interlocutores a constituírem famílias em comunhão com Yahweh, pois assim o caos, a desordem se dissipa na imagem divina presente na vida em casal. A história termina com o descanso de Elohim no sétimo dia, no sábado, um dia abençoado por Deus (Gênesis 2.1-4a).


A Torah Comentada (Brian Kibuuka); Manual do Pentateuco (Victor P. Hamilton)

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